Aposta na simplicidade
Gilberto Gil deixa a complexidade de lado no álbum Fé na festa, que traz no repertório 13 baiões e forrós, sendo nove inéditas.
Julio Maria // Agência Estado
São Paulo - Aos 67 anos, Gilberto Gil quer diminuir e diminuir até se tornar um simples homem tocando seu tambor. Não se inspira mais em explicar as complexidades do mundo, cantar os dilemas da existência humana, impressionar a si e aos outros a cada disco. Seu primeiro passo pode ser o álbum que lança agora, Fé na festa.
São treze baiões e forrós cheios de segundas intenções juninas, nove deles inéditos. E novidade maior é a forma como trabalha agora. Gil, pela primeira vez, é patrocinado por uma empresa privada, a Natura, que bancou gravação, lançamento e turnê. O caminho, para ele, é irreversível. "Por uma gravadora isso não seria mais possível. A indústria está falida". Gil recebeu a reportagem na sede de sua produtora, a Gegê, ao lado da Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. E falou, às vezes mais simples, às vezes mais complexo.
Entrevista
"Quero terminar minha vida batendo um tambor"
Há dois anos você declarou que a composição não o fascinava mais. Seu disco vem com nove inéditas. O que houve?
O Seu Jorge me mostrou uma nova afinação no violão, diferente, e isso me desencadeou uma vontade imensa, uma busca juvenil. Essas composições são todas ingênuas, como de um menino que pega o violão pela primeira vez. Eu me sinto assim
Fé na festa é um disco para ouvir e dançar, sem precisar pensar muito. Isso é você hoje?
Sou eu. Estou me aproximando daquilo que declarei há muitos anos: quero terminar minha vida batendo um tambor. Aos 67 anos, estou chegando perto disso, diminuindo a preocupação em explicar minha complexidade.
E onde aprendeu isso?
Com as porradas.
No Ministério da Cultura, por exemplo?
Ah, muito, muitíssimo. Eu tive que passar quase seis anos ali na tensão, na cobrança. Eu praticamente não dormia. Costumo dizer que eram 24 horas de plantão ali, 'o que é? onde é? onde está o entrave? onde está o desgaste? onde está o perigo?, onde está a arapuca, onde está a armadilha'. Imagina isso o tempo todo.
E isso ensina o quê?
Ensina que ainda que você tome todos os cuidados com as cascas de banana, tem de deixar isso de lado. Isso é da vida. É como a música Não tenho medo da vida (do disco novo). Olha, isso que eu vou dizer é verdadeiro, não é simbólico não. Toda a vez que eu vejo um nó, me coloco diante dessa questão: será que eu vou conseguir desatá-lo? Será que eu terei habilidade suficiente? Então você aprende que não adianta, a vida vai sempre botar um nó na sua frente. É como dizia Caetano: o homem velho é o rei dos animais (risos). Outra coisa que Caetano diz: o homem que não morre envelhece.
E você não tem problema em envelhecer?
Eu não, eu tô vivo! (risos)
Música fica mais ou menos importante aos 68 anos?
Mais, porque ela deixa de ser importante. Não tem mais competição, exuberância, procura pelo extraordinário reconhecimento, essas coisas vão desaparecendo.
Essa história de lançar disco bancado por empresa parece ter virado uma espécie de caminho para a sobrevivência.
As gravadoras não têm mais condições de bancar o artista, estão descapitalizadas, aquele modelo entrou em colapso. A difusão pelo rádio também se diversificou. As gravadoras não impõem mais as agendas das rádios, o 'jabá' (dinheiro que emissoras recebiam para tocar certas músicas) está na encruzilhada.
Um dos dilemas da nova era será o preço das músicas. Quanto vale uma música?
A média mundial está em torno de R$ 2 por faixa.
Mas esse preço é justo? Quanto vale uma música de Luiz Gonzaga para você?
Não tem valor. Luiz Gonzaga pode valer R$ 200, R$ 500, R$ 1 mil. Um disco de coleção não tem preço. É como um quadro de Picasso.
E há ainda a corrente que defende a música de graça.
Acho que essa corrente precisa ser levada em consideração. Para isso, as parcerias com bancos, empresas telefônicas e outras empresas é fundamental. Se tenho minha produção financiada por alguém, posso dar minha música de graça. O que me custou produzir essas canções deste meu disco já foi pago. Meu interesse é que as canções cheguem ao consumidor, que elas sejam ouvidas, não que sejam vendidas.
O artista não vai querer ganhar mais dinheiro com isso?
Até pode querer, mas, digamos, Roberto Carlos. Se ele decide fazer um disco agora e três patrocinadores dão R$ 30 milhões para ele fazer o disco, isso é mais do que ele gasta e muito mais do que poderia arrecadar vendendo.
Mas aí você está falando de um Roberto Carlos.
Sim, no caso de um Roberto Carlos. No caso de um menino que está começando, R$ 1 milhão ou R$ 500 mil.
A saída para o artista é o mecenas, é isso.
Sim, uma espécie de mecenato, que pode vir do estado ou do seu próprio público. Vários grupos fizeram isso. Há um da Austrália que lançou um projeto de financiamento de seu disco pelos fãs. Eles arrecadaram U$S 2 milhões, gastaram US$ 500 mil na produção e foram remunerados com US$ 1,5 milhão que sobraram das contribuições dos fãs. São novas possibilidades O que está definido é que aquela questão do disco na loja que vai cobrir custo de toda uma cadeia liderada pela gravadora, esse modelo já foi. Os que vão chegar estão em experiência.
Como nada é de graça, você está sendo patrocinado pela Natura. O presidente da Natura, Guilherme Leal, se lançou como vice-presidente de Marina Silva, que pertence ao Partido Verde do qual você é filiado. As relações não começam a ficar perigosas?
Cada um vai definir em que medida se sujeita ao sistema e em que medida se mantém independente. Você tem artistas que são completamente submetidos ao sistema televisivo, por exemplo, e não é de agora, há muito tempo. Artistas que sujeitaram suas carreiras à presença permanente nos programas de televisão, programas de auditório, processos subsidiados pelo jabá. E outros não. Digamos que a Natura chegue para mim e diga 'nós só aceitamos continuar patrocinando você se você aceitar se alinhar ao presidente da Natura'. Cabe a mim dizer sim ou não.
FONTE:www.diariodepernambuco.com.br/2010/05/31/viver1_0.asp